Os Perigos do Misticismo
Afetuosamente dedicado a Arthur Edward Waite1.
Tradução: Frater EVER a.k.a. Marcelo Ramos Motta
1. Nota de M.: Arthur Edward Waite: pomposo tradutor de obras de ocultismo para o inglês, mais conhecido por suas péssimas versões da Chave dos Grandes Mistérios e do Dogma e Ritual de Levi. Waite foi um dos muitos “ocultistas” que, após passarem meio século proclamando sua “conexão” com “augustas fraternidades” foram, pé ante pé, na calada da noite, implorar iniciação ao “mago negro” Aleister Crowley — e que depois proclamaram o que lhes foi comunicado como descobertas pessoais. Outros deste mesmo tipo foram os falecidos Peter Ouspensky, Arnold Krumm-Heller, Oskar Schlag e Israel Regardie.
Uma ideia curiosa está sendo continuamente disseminada, e parece estar ganhando terreno: que o misticismo é o Caminho “seguro” ao Altíssimo, e a Magia o perigoso Caminho ao Baixíssimo.
Existem vários comentários a fazer sobre esta asserção. Podemos duvidar que qualquer coisa que valha a pena fazer esteja livre de perigo; e podemos perguntar que perigo pode ameaçar o homem cujo propósito é a sua própria completa ruína.2 Podemos
2. Nota de M.: O propósito final do místico é, claro, a aniquilação — “Nirvana”, Nibbana”– completa. Do verdadeiro místico.
também sorrir, um pouco amargamente, da honestidade desses que tentam incluir toda Magia sob o título de magia negra, como é o truque presente do Místico Militante aqui na terra.
Ora, como alguém que pode protestar alguma familiaridade com a literatura de ambos os caminhos, e que foi honrado por exposição pessoal por parte de adeptos de ambos os caminhos, eu creio que posso fazer uma comparação imparcial entre os dois.
Esta é a teoria mágica: a primeira variação do Infinito deve ser equilibrada, e desta forma corrigida. Assim, o “grande Magista”, Mayan, o fazedor de Ilusão, o Criador, deve ser enfrentado em combate. Então, “se Satã estiver dividido contra Satã, como pode o seu reino perdurar?” Ambos desaparecem; a ilusão cessa. Matematicamente, 1 + ( -1 ) = 0. E este caminho é simbolizado no Taro sob a figura do Magus, a carta número I, a primeira variação do Zero; mas é referido a Beth, 2, Mercúrio, o deus de Sabedoria, Magia, e Verdade.
E este Magus do Taro tem o aspecto duplo do Magista, ele próprio, e do “Grande Magista” descrito em Liber 418.
Agora, a fórmula do místico é muito mais simples. Matematicamente, é 1 – 1 = 0. Ele é como um grão de sal lançado ao mar; o processo de dissolução é obviamente mais fácil que o choque de mundos tencionado pelo magista. “Aquieta-te, e sente-te como um grão de pó na presença de Deus; não, até menos que um grão de pó, como nada” – esta é a inteiramente suficiente simplicidade do método dele. Infelizmente, muita gente não pode fazer isto. E quando você se queixa da sua inabilidade, o místico é bem capaz de encolher os ombros e por você de lado.
Este caminho é simbolizado pelo “Louco” do Taro, que é ao mesmo tempo o Místico e o Infinito.
Mas aparte isto, absolutamente não é certo que a fórmula seja tão simples quanto parece. Como se assegurará o místico de que “Deus” é realmente “Deus”, e não algum demônio mascarando-se em Sua imagem? Nós vemos Gerson sacrificando Huss ao seu “Deus”; vemos um moderno jornalista, que tem feito mais que brincar com misticismo, escrevendo: “Esta vida mística, em sua forma mais elevada, é inegavelmente egoísta”; nós vemos outro escrevendo como a velhota que finalizou sua crítica do Universo dizendo, “Só eu e fulana seremos salvas – e eu não tenho muita certeza a respeito de fulana“; nós vemos uma senhora mística que, aos noventa e nove anos de idade, espuma e vocifera por causa de uma pretensa quebra de seus pretensos direitos autorais; nós vemos outro “mahatma“ tão sensitivo que a menção do nome do presente escritor induz nele um ataque de mania epiléptica. Se tais pessoas estão realmente “absortas em Deus” — que é Deus?
É-nos dito na Epístola aos Gálatas que os frutos do Espírito são paz, amor, alegria, tolerância, gentileza, bondade, fé, meiguice, temperança; e em outro lugar, nos é dito: “Pelos seus frutos os conhecereis.“
Devemos então concluir que as pessoas mencionadas acima ou estão mentindo, e nunca atingira união alguma, ou se uniram a um diabo.
Tais são os “Irmãos do Caminho da Esquerda”, descritos tão completamente em Liber 418.3
3. Nota de M.: A expressão “união com um diabo” não deve ser interpretada necessariamente no sentido teológico. Um místico que harmonizasse e convergisse todas as suas faculdades a uma faculdade cerebral que não é o centro natural — Tiphareth — funcionaria como um demônio. Desequilíbrio não é apenas “mental”; pode existir desequilíbrio moral, ou espiritual. Por outro lado, um mítico que se unisse a um elemental, ou a um “daemon”, estaria abjurando sua humanidade, e igualmente funcionaria como um demônio. O primeiro erro seria de auto-indisciplina; o segundo de amor NÃO sob vontade.
Destes, o sinal mais característico é o seu exclusivismo. “Nós somos os verdadeiros.” “O nosso é o único Caminho.” “Todos os budistas são malvados” — a insanidade de orgulho espiritual.
O magista não está propenso a cair neste temível atoleiro de orgulho quanto o místico; ele está ocupado com coisas exteriores a si mesmo, e pode corrigir seu orgulho. De fato, ele está constantemente sendo corrigido pela Natureza. Ele, o Grande, não pode correr uma milha em quatro minutos! O místico é solitário e fechado; falta-lhe combate saudável. Nós somos todos meninos de escola, e o campo de futebol é uma profilaxia perfeita para as cabeças inchadas. Quando o místico encontra um obstáculo, ele “faz de conta” . Ele diz que o obstáculo “é apenas ilusão”. Ele tem a sensação de bem-estar do viciado em morfina, as ilusões patológicas da vítima de paralisia genérica. Ele perde o poder de encarar os fatos; ele se alimenta de sua própria imaginação; ele se convence a si mesmo de sua consecução. Se o contradizem no assunto, ele se torna emburrado e despeitado e vingativo. Se eu critico o Sr. X, ele grita, e tenta causar-me dano pelas costas; se eu digo que Madame Y não é exatamente Santa Tereza, ela escreve um livro para provar que ela é.
Tais pessoas, “cheias de vento, e a névoa fedorenta que inspiram, apodrecem por dentro e espelham um contágio imundo”, como escreveu Milton de um grupo menos perigoso de guias espirituais.
Para seus infelizes seguidores e imitadores, todas palavras de comiseração não bastam. O Universo inteiro é para eles apenas “o espelho de suas tolas faces”; porém, ao contrário de Sir Palamedes, eles admiram a imagem. Narcisos morais e espirituais, eles perecem nas águas da ilusão. Um amigo meu, um advogado em Nápoles, contou-me estranhos casos de onde tal auto-adoração acaba.
E a sutileza do diabo é mostrada particularmente no método pelo qual tais nófitos são agadunhados pelos Irmãos Negros. Existe uma veneração exagerada; uma suntuosidade de tom, uma pomposidade vaidosa, um uso de linguajar arcaico, um falso véu de santidade sobre o relicário impuro. Pedantismo se mascara como dignidade; uma colcha de retalhos de medievalismo ou orientalismo se faz passar por profundidade e tradição; gíria técnica passa por erudição; letra morta e fetichismo supersticioso se acumulam nas pregas da saia do presumido, do melindroso, do completo fariseu.
Colorário disto é a completa falta de virtude humana. O maior dos magistas, quando age por sua capacidade de homem, age como um homem deveria agir. Em particular, ele aprendeu bondade e simpatia. Altruismo é, freqüentemente, o propósito ultimal dele. Precisamente isto falta ao místico. Tentando absorver os planos mais baixos nos mais altos, ele descuida os mais baixos, um erro que nenhum magista poderia cometer.
A freira Gertrude, quando chegava a sua vez de lavar os pratos, costumava explicar que sentia muito, mas que naquele momento exato ela estava sendo casada, com completo coro celestial e cerimônia, com o Salvador.
Centenas de místicos se fecham por completo e para sempre. Não só fica a sua capacidade de produzir riqueza perdida para a sociedade, mas também o seu amor e a sua boa vontade; e pior que tudo, o seu exemplo e o seu preceito. Cristo, no auge de sua carreira, achou tempo para lavar os pés dos seus discípulos; qualquer Mestre que não faz isto sobre todos os planos é um Irmão Negro. Os indús não honram qualquer homem que se torne “Sannyasi” (aproximadamente o mesmo que o nosso “eremita”) a não ser que ele tenha primeiramente cumprido por completo todos os seus deveres como macho e cidadão. O celibato é imoral, e o celibata evita uma das maiores provas do Caminho.
Cuidado com esses que evitam as dificuldades menos elevadas: é muito provável que eles evitarão também as dificuldades mais altas.
Dos perigos especiais da Caminho, não temos aqui espaço para escrever; cada estudante encontra a cada passo tentações refletindo suas fraquezas especiais e peculiares. Eu tratei portanto apenas dos perigos inseparáveis do caminho mesmo; perigos inerentes nele. Nem por um instante eu pedirei ao mais fraco, que seja, que retroceda ou se afaste daquele caminho; mas eu pedirei mesmo ao mais forte que aplique estes corretivos: primeiro, a atitude cética ou científica, tanto em perspectiva quanto em método; segundo, uma vida sadia, significando por estas palavras aquilo que o atleta e o desbravador significam; terceiro, companheirismo humano: devoção à vida, ao trabalho, ao dever.
Que ele se lembre de que uma grama de orgulho honesto é melhor que uma tonelada de humildade falsa, se bem que uma grama de verdadeira humildade vale uma grama de honesto orgulho; o homem que trabalha não tem tempo para uma coisa ou a outra. E que ele conserve em mente a descrição da Lei dada por Cristo: “ama a Deus acima de todas as coisas, e a teu próximo como a ti mesmo”.
Aleister Crowley